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Torto Arado: a história dos moradores de Água Negra

 

Por que ler Torto Arado? Porque só se fala nisso e todos estão lendo (rs); por se tratar de um romance premiado aqui no Brasil e também em Portugal, vencedor dos prêmios Leya, Jabuti e Oceanos; para prestigiar o autor Itamar Vieira Junior, baiano, de Salvador; para conhecer a realidade dos trabalhadores rurais que ainda vivem em situação análoga à escravidão; porque o romance é uma delícia! É dividido em 3 partes: são 3 narradoras, 3 vozes femininas, 3 perspectivas. Os capítulos são curtos, o que dá ritmo à leitura, dá vontade de ficar lendo sem parar.
A cada hora, sua agonia.

Um outro motivo, confesso que esse foi o que mais me tocou, é viver a vida dos personagens - da infância à velhice -, a forma como cada um lida com suas questões, suas forças, seus medos, suas coragens, suas revoltas. Acompanhar um povo ainda conectado à Natureza, que sente que não apenas faz parte dela, mas É a própria natureza - a terra, o vento, o sol, as águas. Um tempo e espaço do Jarê, na Chapada Diamantina, onde os encantados, os espíritos da Natureza estão presentes, ao som da dança, dos atabaques. A mística envolve os moradores de Água Negra, há respeito às ervas, à figura do curandeiro, da parteira, há fé no invisível, há conexão com o sagrado.

"Era a casa de meu pai, o curador Zeca Chapéu Grande, e havia crescido entre loucos e preces, entre gritos e xaropes de raiz, entre velas e tambores. A simples presença de um encantado que eu não conhecia não seria capaz de me intimidar, fosse uma real manifestação do encanto ou da loucura."

"Meu pai olhava para mim e dizia: O vento não sopra, ele é a própria viração, e tudo aquilo fazia sentido. Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e coivara. [...] Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração." 

Através de Zeca Chapéu Grande, de suas filhas Bibiana e Belonísia, de Salu, de Donana, de Severo, a história vai se desenrolando, meio mágica, às vezes, bem realista em outros momentos. Dura, pungente, verdadeira. É um belo romance.

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