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Querida Konbini (Konbini Ningen), de Sayaka Murata

Irasshaimasê! Bem-vindo em japonês. Konbini é uma espécie de loja de conveniência japonesa e a autora utiliza esse "não-lugar" como metáfora da vida. Discute o que é ser normal na sociedade, as relações interpessoais e a nossa relação com o trabalho. A personagem principal, Keiko, é a narradora. Ela é uma espécie de caricatura desse não-normal. Possui problemas de sociabilidade, é desprovida de sentimentos, apresenta uma forma muito racional e analítica de funcionar. Quase um robô rodando um programa de como ser "ser humano" (Lembrei dos andróides de Blade Runner!). É alguém que não se adapta ao entorno, não consegue compreender "qual o jeito certo de sorrir, de cumprimentar", de viver. Os outros a consideram estranha, a família entende que ela precisa ser curada, ela não entende qual é a sua doença.

Do ponto de vista de Keiko, nos contagiamos com o jeito de ser das pessoas com as quais convivemos, absorvemos seu modo de vestir, de falar, de reagir. E esse "contágio" é o que manteria a nossa humanidade. Daí que Keiko aprende desde cedo a calar e a imitar as pessoas, como forma de ser aceita, de pertencer. Começa a trabalhar em uma konbini: assiste vídeos sobre como sorrir, como falar, como agir; recebe um manual de comportamento, uma farda e um mundo conhecido, confortável, onde aparentemente nada muda (embora tudo na konbini esteja sempre mudando). Ela categoriza as pessoas em Funcionários, Senhores Clientes e Gerentes, com letra maiúscula mesmo.

"Eu queria voltar logo para a loja. Lá, as coisas não são tão complicadas. O importante é você ser um membro da equipe. Gênero, idade, nacionalidade não importam, pois ao vestir o uniforme todos se tornam Funcionários, em pé de igualdade."

Ao longo dos anos, Keiko percebe que fora da konbini é semelhante, há um manual implícito de como viver, de como ser "um Ser Humano Normal". Todos precisam contribuir para a sociedade. Há um script rodando... idade correta para conseguir emprego fixo, para casar, para ter filhos e por aí vai. "O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retificados"; "julgar e condenar as pessoas esquisitas é um tipo de hobby das pessoas normais".

Em determinado ponto da história, Keiko decide se demitir da konbini, onde trabalhava por contrato temporário (há 18 anos) para tentar se encaixar nas expectativas sociais, de que uma mulher não-casada com 36 anos precisa ter um emprego fixo, que pague melhor. Acontece que ela percebe que toda sua rotina estava organizada em função daquele trabalho: seus horários de dormir e acordar, de se alimentar, seus dias da semana e também seus finais de semana. "Saber que eu precisava cuidar do meu corpo para o trabalho me fazia pegar no sono num instante. Mas agora eu não sabia nem mesmo para que deveria dormir." Toda a vida de Keiko era a konbini. Sem esse trabalho ela se vê perdida.

Keiko, mesmo com o aspecto robotizado (ou exatamente por isso), poderia ser qualquer um de nós e essa é uma discussão interessante no livro. Estamos tão voltados para o outro, para o que é esperado de nós, que já não sabemos mais por que vivemos. Quem sou eu? Qual o sentido da minha vida no mundo? Quando a vida terminar o que quero ter feito pelas pessoas? Por mim? Keiko não se dedica a essas questões, próprias do ser humano. Ela e seus "amigos" vivem como andróides, imitando os outros em tudo, cumprindo papeis, identificados com o trabalho, com os roteiros que a sociedade nos impõe. Fica a pergunta, é assim que queremos viver? Que cada um reflita e tome as rédeas da própria vida!   

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