Talvez por conta da pandemia de COVID-19 e o grande número de mortos no mundo, os últimos livros que li falam sobre o morrer, trazem uma reflexão sobre como nos sentimos quando temos uma doença terminal e sabemos que o tempo de vida que nos resta está acabando. "A morte de Ivan Ilitch", de Leon Tolstoi, é uma ficção e, como o nome sugere, narra a morte - e também a vida - de um juiz de 45 anos, no século XIX.
Em seguida, li "A morte é um dia que vale a pena viver", de Ana Claudia Quintana Arantes, livro atual que aborda o morrer do ponto de vista de uma médica especialista em Cuidados Paliativos. Ana Claudia trabalha com doentes terminais e observa que o que mais os apavora não é a morte em si, mas a ideia de não ter aproveitado a própria vida, o como vivemos. "E se na verdade toda a minha vida tiver sido errada?", se questiona Ivan Ilitch. Falar sobre o fim nos lembra do caminho que percorremos, não é verdade? Não me sinto à vontade para "dar conselhos" sobre um tema tão gigante, escrevo para registrar e compartilhar inquietações.
De maneira didática, Tolstoi nos conta sobre um sujeito que viveu sua vida em busca de status, dinheiro, prestígio. Não cultivou amizades, casou por conveniência, também não amava o que fazia, mas o poder que a posição de juiz lhe concedia. Era vaidoso. Como está na moda hoje em dia, digamos que Ivan Ilitch era um "cara do bem", não fazia mal a ninguém, era agradável e seguidor das conveniências sociais.
"Como estudante, ele já era exatamente o que viria a ser para o resto da vida: um jovem muito capaz, alegre, sociável, de boa paz, embora rígido no que considerava serem suas obrigações - e considerava suas obrigações o que quer que os seus superiores assim considerassem. Nem quando garoto nem quando adulto foi pessoa de pedir favores, embora fosse característica sua sentir-se atraído por pessoas que estivessem em posições mais altas que a sua. Adotava os modos e pontos de vista delas e logo estabelecia relações de amizade com essas pessoas".
A novela começa com os colegas de Tribunal tomando conhecimento do falecimento de Ivan Ilitch e fica claro, desde as primeiras páginas, que o finado não era admirado nem querido pelos pares ou pelos familiares. Possuía uma moral frágil, no sentido de que seus atos não eram guiados por seus valores, mas pela aceitação do grupo dominante do qual queria aprovação. Era medíocre e ambicioso. Sua casa era decorada para imitar as casas das classes altas. Às vezes, lia algum livro que estivesse sendo comentado no momento.
"Ainda quando estudante fizera coisas que lhe pareceram vis e na ocasião o fizeram sentir-se enojado consigo, mas, mais tarde, percebendo que a mesma conduta era adotada por pessoas do mais alto nível e elas não a consideravam errada, chegou a não exatamente tê-las como certas, mas a simplesmente esquecê-las ou a não se incomodar ao lembrá-las."
Tudo ia "bem", até que Ivan Ilitch adoece de uma doença meio misteriosa, que lhe causava uma dor insistente e um gosto estranho na boca. Os melhores médicos não chegam a um diagnóstico/tratamento precisos. Ele vai definhando, as dores aumentando - embora há trechos em que ele se pergunta se as dores físicas existiam realmente -, seus olhos vão perdendo a luz, "sentia sua alma negra como a noite". Ele via que estava morrendo e inicia um processo de enfrentamento com o que Ana Claudia Quintana Arantes vai chamar de "muro", a morte. "O trabalho já não podia esconder dele o que queria que ficasse escondido". E fora da ficção, Ana Cláudia vivencia que "as pessoas morrem como viveram. Se nunca
viveram com sentido, dificilmente terão a chance de viver a morte com
sentido".
"O que separa o nascimento da morte é o tempo. A vida é o que fazemos dentro desse tempo; é a nossa experiência. Quando passamos a vida esperando pelo fim do dia, pelo fim da semana, pelas férias, pelo fim do ano, pela aposentadoria, estamos torcendo para que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. Dizemos que depois do trabalho vamos viver, mas esquecemos que a opção 'vida' não é um botão 'on/off' que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver." (Arantes)
Falamos tanto em viver a vida, em sermos felizes, mas sabemos o que nos faz felizes? Se amanhã fosse o nosso último dia de vida, o que faríamos hoje? Será que nossa vida até aqui teve sentido? Ou, assim como Ivan Ilitch, se ficarmos em silêncio e escutarmos a voz da nossa alma iremos perceber que nossos dias são falsos, "que tudo aquilo para o que você viveu e continua vivendo é mentira e decepção disfarçadas de vida e morte?". O maior sofrimento de Ivan Ilitch não era a dor física, mas a descoberta de que seus 45 anos de vida foram um engano, uma mentira. Ana Claudia fala que observa 4 (quatro) dimensões no sofrimento: física, emocional, social e espiritual. Somos mais complexos que só um corpo físico...
Ela acrescenta "a vida vivida com dignidade, sentido e valor, em todas as suas
dimensões, pode aceitar a morte como parte do tempo vivido assim, pleno
de sentido". Estamos juntos nessa trilha! Esse ano é especial. Uma oportunidade para refletirmos sobre a finitude.
Afinal, deve doer receber a "indesejada das gentes" com vergonha
da vida vivida; olhar para os lados e perceber que não temos ninguém
para trocar um olhar de compreensão, de amor; nos dar conta de que não
deixamos um perfume suave nos lugares por onde passamos...
Que possamos estar conscientes de quem somos, das nossas escolhas, do que pensamos, sentimos e da forma como agimos. E que essa bússola interna guie nossos dias e nos ajude a chegar ao final da nossa trajetória em paz, satisfeitos com nossas decisões, com aquilo que construímos fora e dentro de nós. Que Tostoi nos inspire! Assim como os relatos da médica que lida com a morte em seu dia a dia.
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