Pular para o conteúdo principal

Rubem Alves e o saber ouvir


Hoje o mundo fica menos iluminado... (aliás, esse ano tá duro, hein? Vilaró, Paco de Lucía, Garcia Márquez, Jair Rodrigues, Eduardo Coutinho, João Ubaldo...) o Brasil perde um grande pensador. O mestre Rubem Alves não está mais entre nós para nos provocar, encantar, sensibilizar, ensinar. E sempre com simplicidade, sem "hermetismos" ou vaidades, falava com amor. Incrível como, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, sinto-me próxima a ele. Vai em paz, professor de espantos!



Sobre o ouvir

O ato de ouvir exige humildade de quem ouve. E a humildade está nisso: saber, não com a cabeça mas com o coração, que é possível que o outro veja mundos que nós não vemos. Mas isso, admitir que o outro vê coisas que nós não vemos, implica reconhecer que somos meio cegos... Vemos pouco, vemos torto, vemos errado. Bernardo Soares diz que aquilo que vemos é aquilo que somos. Assim, para sair do círculo fechado de nós mesmos, em que só vemos nosso próprio rosto refletido nas coisas, é preciso que nos coloquemos fora de nós mesmos. Não somos o umbigo do mundo. E isso é muito difícil: reconhecer que não somos o umbigo do mundo! Para se ouvir de verdade, isso é, para nos colocarmos dentro do mundo do outro, é preciso colocar entre parêntesis, ainda que provisoriamente, as nossas opiniões. Minhas opiniões! É claro que eu acredito que as minhas opiniões são a expressão da verdade. Se eu não acreditasse na verdade daquilo que penso, trocaria meus pensamentos por outros. E se falo é para fazer com que aquele que me ouve acredite em mim, troque os seus pensamentos pelos meus. É norma de boa educação ficar em silêncio enquanto o outro fala. Mas esse silêncio não é verdadeiro. É apenas um tempo de espera: estou esperando que ele termine de falar para que eu, então, diga a verdade. A prova disto está no seguinte: se levo a sério o que o outro está dizendo, que é diferente do que penso, depois de terminada a sua fala eu ficaria em silêncio, para ruminar aquilo que ele disse, que me é estranho. Mas isso jamais acontece. A resposta vem sempre rápida e imediata. A resposta rápida quer dizer: "Não preciso ouvi-lo. Basta que eu me ouça a mim mesmo. Não vou perder tempo ruminando o que você disse. Aquilo que você disse não é o que eu diria, portanto está errado..."

Rubem Alves, em Ostra feliz não faz pérola, da ed. Planeta. p. 47

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Sadece Sen - Só você (filme legal no Netflix)

Fazia tempo não assistia uma história de amor tão linda quanto a desse filme turco: Sadece Sen (que significa "só você", em português), lançado em 2014. Uma amiga me recomendou e como eu adoro um romance, fui conferir. Está na Netflix. A diretora é Hakan Yonat, também autora do documentário Ecumenópolis: a cidade sem limites , sobre Istambul em um caminho neoliberal destrutivo (mas essa é outra história!). Sadece Sen nos conta de Ali (Ibrahim Çelikkol) e Hazal (Belçim Bilgin), lindos e turcos (rs). Ali é um ex-pugilista, órfão, de olhos tristes, que vive assombrado com o peso de escolhas - e suas consequências - das quais se arrepende. Já Hazal é uma moça primaveril, bonita e cega que trabalha em um call center, mas que também esconde uma escuridão interna, uma culpa que a aprisiona. Os detalhes vão aparecendo ao longo do filme. Eles se conhecem meio que "por acaso" (será que há acasos na vida?); Hazal costumava ir assistir tv com o tio, que era...

Mortal Loucura - Gregório de Matos

O ser humano sendo sublime e humilde... Poema de Gregório de Matos, musicado por José Miguel Wisnik e interpretado por Caetano Veloso para o musical Onqotô do Grupo Corpo em 2005. No vídeo, quem recita é Bethânia. Mortal loucura Na oração, que desaterra … a terra, Quer Deus que a quem está o cuidado … dado, Pregue que a vida é emprestado … estado, Mistérios mil que desenterra … enterra. Quem não cuida de si, que é terra, … erra, Que o alto Rei, por afamado … amado, É quem lhe assiste ao desvelado … lado, Da morte ao ar não desaferra, … aferra. Quem do mundo a mortal loucura … cura, A vontade de Deus sagrada … agrada Firmar-lhe a vida em atadura … dura. O voz zelosa, que dobrada … brada, Já sei que a flor da formosura, … usura, Será no fim dessa jornada … nada.

Geraldinos e Arquibaldos

Sempre falo que a Arte encanta, transcende, sacode as nossas convicções, torna os dias mais leves e interessantes. A música, por exemplo, tem o poder de nos emocionar instantaneamente! Uma melodia nos atravessa... faz rir ou chorar ou dançar, somos afetados. " Geraldinos e Arquibaldos " é uma dessas canções poderosas - de Gonzaguinha não podia ser diferente! - que sacodem a alma e agitam o corpo. Na interpretação da banda Chicas ganhou vida nova: E olha que interessante a história da música: " geraldinos e arquibaldos é uma expressão de fácil entendimento para aqueles que freqüentaram o Maracanã até a sua reforma no ano de 2005. A clássica separação entre arquibancada e geral era um dos charmes daquele que desde o início de sua existência possui a alcunha de “maior do mundo”. Muito anterior ao surgimento da coluna no Jornal dos Sports, a denominação “geraldinos e arquibaldos” nasceu em meio a tantos pensamentos geniais de Nelson Rodrigues. Considerando...